Posted by: Psiquiatra Cristão
"Hem? Hem? O mais penso, testo e explico: todo o mundo é louco. O senhor, eu, nós, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara da loucura. No geral. Isso é que é a salvação da alma”
Guimarães Rosa,
Grande Sertão Veredas
Introdução
“E.M. F era cabeleireiro, 27 anos, solteiro, evangélico a 8 anos. Compareceu ao consultório psiquiátrico queixando que apesar de inúmeras sessões de libertação em sua igreja local não conseguia ficar livre de ações do demônio em sua vida.
“As garras dele andam no meu corpo”, “sinto a densidade da nuvem dele ao redor de mim”.
Antes do início das supostas opressões dizia ser isolado, desconfiado das pessoas, com dificuldade de relacionamento e convívio social. Foi medicado por seu Psiquiatra e retornou semanas depois dizendo estar melhor e feliz “as opressões pararam”.
“P.T.C era desempregada, 31 anos, casada, evangélica há 7 anos. Foi internada em um hospital psiquiátrico por seus familiares porque após ir a uma determinada igreja começou a ter fenômenos estranhos: mudava a voz, tinha comportamentos estranhos. Ficou internada em um hospital psiquiátrico por uma semana, sem um diagnóstico preciso (“provável psicose”).
Recebeu alta com medicação para depressão e antipsicoticos. Iniciou acompanhamento psiquiátrico ambulatorial com retirada progressiva da medicação (por não apresentar sintomas que justificassem seu uso), permanecendo assintomática após bom tempo de acompanhamento”.
As histórias acima representam constantes dilemas no universo Cristão Protestante Brasileiro: a distinção entre quadros psiquiátricos e quadros oriundos de fenômenos espirituais.
O primeiro paciente, portador de um transtorno mental chamado Esquizofrenia, sofreu por longo tempo por acreditar (e ser ensinado) que seus problemas tinham como causa a ação do demônio e espíritos malignos.
O segundo, mesmo sem alterações psicopatológicas evidentes e rápido desfecho dos sintomas, foi tratado por bom tempo com medicações indicadas para pacientes esquizofrênicos. Permaneceu assintomático após longo período sem o uso de tais medicações.
Desde a idade média o adoecimento mental foi implicado como sendo causado por fenômenos religiosos.
Neste ínterim, quadros de loucura (as psicoses) eram atribuídos normalmente a uma única entidade causal: a possessão demoníaca. Da mesma forma, outros quadros psiquiátricos graves tem sua causas atribuídas a outras ações do mundo espiritual: opressão espiritual, possessão, obras de macumbaria, feitiçaria, maldições hereditárias e espirituais, etc. Muitos loucos e acometidos de outros transtornos mentais foram brutalmente queimados em fogueiras ou excluídos da sociedade com bases em tais conceitos.
As clássicas origens dos transtornos mentais, baseadas na neurobiologia (com ênfase na origem orgânica das doenças) e teorias psicopatológicas e psicodinâmicas são normalmente ignoradas pelos segmentos religiosos brasileiros: protestantes, católicos, dentre outros.
Por outro lado, psiquiatras e psicólogos, por diversas razões, ignoram a possibilidade de quadros psiquiátricos terem como origem fatores espirituais.
Mat.: 8 – 16 “Chegada a tarde, trouxeram-lhe muitos endemoninhados; e ele meramente com a palavra expeliu os espíritos e curou todos os que estavam doentes”.
Marcos: 5 “Ao desembarcar, logo veio dos sepulcros, ao seu encontro, um homem possesso de espírito imundo…o qual vivia nos sepulcros, e nem mesmo com cadeias alguém podia prendê-lo…Porque Jesus lhe dissera: Espírito imundo, sai desse homem!…Indo ter com Jesus, viram o endemoninhado, o que tivera a legião, assentado, vestido, em perfeito juízo; e temeram”.
Em toda a Bíblia não encontramos texto que trata diretamente sobre a origem dos transtornos mentais. Entretanto, alguns textos bíblicos deixam bem claro que pessoas alvo de espíritos malignos podem ter comprometimento em seu estado psíquico tanto nas funções básicas quanto no comportamento geral.
Mateus capítulo 8, versículo 16, deixa bem claro que algumas doenças podem ser causadas por espíritos malignos, uma vez que pessoas eram curadas após ficarem livres de tais espíritos.
Marcos capítulo 5, nos fala do endemoninhado gesareno, descrevendo um quadro de isolamento social (“vivia nos sepulcros”), agressividade e impulsividade (“nem com mesmo cadeias alguém podia prende-lo”), errância (“andava sempre, de noite e de dia”), automutilação e alterações graves de comportamento (“ferindo-se com pedras). O quadro se enquadraria perfeitamente nas descrições dos Transtornos Psicóticos modernos. Novamente a libertação das forças espirituais promoveu cura (“em perfeito juízo”).
As doenças sem causas espirituais
Marcos: 1 – 32 “E, tendo chegado a tarde, quando já estava se pondo o sol, trouxeram-lhe todos os que se achavam enfermos e os endemoninhados”.
O texto de Marcos capítulo 1, versículo 32 separa os enfermos dos endemoninhados, deixando bem claro que há enfermidades sem origem espiritual.
Neste momento é importante lembrar que o pecado original do homem no Jardim do Éden não apenas proporcionou seqüelas espirituais, mas, fragilidades e disfunções em seu corpo, alma e espírito.
Para a Psiquiatria os transtornos mentais em geral resultam da soma de muitos fatores como:
– Alterações no funcionamento do cérebro
– Fatores genéticos
– Fatores da própria personalidade do indivíduo
– Condições de educação
– Ação de um grande número de estresses
– Agressões de ordem física e psicológica
– Perdas, decepções, frustrações e sofrimentos físicos e psíquicos que perturbam o equilíbrio emocional.
Assim, podemos então afirmar que os transtornos mentais não tem uma causa precisa, específica, mas que são formados por fatores biológicos, psicológicos e sócio-culturais. Dentre os transtornos mentais, merece especial consideração quando falamos sobre diferenciação de quadros psiquiátricos e espirituais: a Esquizofrenia.
A esquizofrenia é uma doença psiquiátrica endógena (psicose) com dois tipos predominantes de sintomas: os produtivos e os negativos. Os sintomas produtivos (ou positivos) são, basicamente, os delírios e as alucinações.
O delírio se caracteriza por uma visão distorcida da realidade. O mais comum, na esquizofrenia, é o delírio persecutório. O indivíduo acredita que está sendo perseguido e observado por pessoas que tramam alguma coisa contra ele. Imagina, por exemplo, que instalaram câmeras de vídeo em sua casa para descobrirem o que faz a fim de prejudicá-lo.
As alucinações caracterizam-se por uma percepção que ocorre independentemente de um estímulo externo. Por exemplo: o doente escuta vozes, em geral, as vozes dos perseguidores, que dão ordens e comentam o que ele faz. São vozes imperativas que podem levá-lo ao suicídio, mandando que pule de um prédio ou de uma ponte.
Delírio e alucinações são sintomas produtivos que respondem mais rapidamente ao tratamento. No outro extremo, estão os sintomas negativos da doença, mais resistentes ao tratamento, e que se caracterizam por diminuição dos impulsos e da vontade e por achatamento afetivo. Há a perda da capacidade de entrar em ressonância com o ambiente, de sentir alegria ou tristeza condizentes com a situação externa.
Dentro de seu quadro clínico pacientes esquizofrênicos podem apresentar delírios em que estão sendo perseguidos pelo diabo, escutar vozes que atribui ser de entidades malignas, ter visões que atribuem ser espirituais, conversar com Deus (ou mesmo acreditarem ser Deus!) e outros sinais e sintomas que podem confundir com achados normalmente presentes dentro do contexto espiritual em que vivem ou participam.
Podem deste modo, serem tratados como portadores de opressões e/ou possessões espirituais e não serem encaminhados para tratamento eficaz, comprometendo sua recuperação com sérios riscos a si e a terceiros. Assim é de suma importância diferenciar quadros de origem espiritual de quadros psiquiátricos.
Diferenças entre Transtornos Mentais e Quadros Espirituais
Do exposto acima percebemos que quadros de possessão e opressão por espíritos malignos (segundo a Bíblia) podem ter muita semelhança com quadros psiquiátricos, sobretudo Esquizofrenia.
Controle
Espirituais - Há, por parte do sujeito, um grau de controle e direcionamento sobre as vivências entre as crises ou episódios de possessão / opressão.
Mentais - Experiências vivenciadas sem qualquer controle
Significado para Vida
Espirituais - Sentido de auto-realização experiências que alargam a vida, produzem frutos espirituais. Se possessão / opressão leva a angustia e desejo de libertação.
Mentais - Experiências comprometem a vida do sujeito progressivamente, sem períodos ou fases de crescimento.
Positividade / Negatividade
Espirituais - As vivências tem, de modo geral, sentido positivo para a vida do sujeito. Há busca, se negativo, de libertação.
Mentais - Vivencias de modo geral com sentido negativo. Ruptura.
Relação com Sintomas Psicopatologicos
Espirituais - Experiências isoladas, que não se articulam com outros sintomas de transtornos mentais. Se possessão ou opressão, entre episódios sujeito normal e com bom funcionamento psíquico.
Mentais - Geralmente não são vivencias isoladas, ao lado do delírio ou alucinação há outros sintomas psiquiátricos que no conjunto sugerem o quadro psiquiátrico.
Conteúdo Sintomas
Espirituais - Os conteúdos seguem uma doutrina religiosa, são aceitos pelos membros da religião , ainda que estranhhos.
Mentais - Conteúdos são estranhos ao próprio meio cristão, são bizarros, incomuns, com status divino.
Características das alucinações, visões
Espirituais - Elementos mais no campo intelectual, com alguma crítica.
Mentais - Elementos mais corpóreos com mais certeza de serem reais
Grau de certeza das alterações delirantes e irreais.
Espirituais - Pode haver dúvida ou conflitos
Mentais - Geralmente apresentam certeza absoluta das visões, alucinações.
Duração
Mentais - O quadro patológico aparente dura pouco, resolve com intervenções com cura interior , libertação ou sem as mesmas.
Espirituais - O quadro não melhora com o tempo, mesmo após inúmeras sessões de cura interior e libertação, pioram com o tempo.
Busca de ajuda
Espirituais - Normalmente há a busca de ajuda e troca de experiências com outros
Mentais - O sujeito tende ao isolamento, com desconfiança, não compartilha.
Vida e Personalidade Prévia
Espirituais - Normalmente não se encontram alterações no comportamento ou funcionamento mental previamente as crises ou episódios de possessão/opressão
Mentais - Há histórias de traumas, conflitos e alterações de comportamento previamente em alguns casos.
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